As noites escuras da vida
Se olharmos com atenção para a vida de alguns santos, rapidamente, nos damos conta de um período que caracteriza a vida e obra destas personalidades que formam a nossa bandeira e que nos servem de exemplo. Se a sua vida e obra é exemplo a imitar, estes períodos são momentos que nos assistem e que, sem dúvida, fazem parte da vida.
Mas que período ou períodos são estes? Falo do período em que se sente a ausência de Deus nas nossas vidas. Uns apelidam-nos de «manhãs de silêncio», «silêncio de Deus», «ausência de Deus» ou, como dizia S. João da Cruz, «as noites escuras». São períodos concretos e muito intensos mas que estão longe de ser ausentes de Deus, pelo contrário.
Santa Teresa de Calcutá diz que passou mais de vinte anos neste período. São João XXIII, nos seus diários, apontava esta «ausência» como um período incerto e constante. Santa Teresa de Ávila fazia poemas nestes períodos em que gritava «Vuestra soy, para Vos nací. Qué mandais hacer de mi?».
E hoje, dia de S. João da Cruz, partilho convosco um dos mais belos poemas da cristandade do século XVI, de um homem que vivia num tempo negro para a Igreja. Ele vivia na noite escura, mas sabia de onde vinha a Fonte; ele vivia na escuridão, mas procurava aquela eterna Luz. A noite - lugar das trevas, do medo, do mal - não tem poder nenhum quando confiamos na Luz da luz, quando depositamos a nossa confiança na Fonte que mana e corre. E escrevia ele:
Bem eu sei a fonte que mana e corre
Embora seja noite.
Aquela eterna fonte não a vê ninguém
E bem sei onde é e donde vem,
Embora seja noite.
Não sei a fonte dela, que não há,
Mas sei que toda a fonte vem de lá,
Embora seja noite.
Não pode haver, eu sei, coisa tão bela
E terra e céus beleza bebem dela,
Embora seja noite.
Porque não pode ali o fundo achar,
Sei que ninguém a pode atravessar,
Embora seja noite.
A claridade sua não escurece
E sei que toda a luz dela amanhece,
Embora seja noite.
Que regam céus, infernos e as gentes,
Embora seja noite.
E desta fonte nasce uma corrente
E bem sei eu que é forte e omnipotente,
Embora seja noite.
Das duas a corrente, que procede
Sei que nenhuma delas a precede,
Embora seja noite.
E esta eterna fonte ‘stá ‘scondida
Em este vivo pão a dar-nos vida,
Embora seja noite.
Aqui está a chamar as criaturas
Que bebem desta água e às escuras,
Porque é de noite.
E esta viva fonte que desejo
Em este pão da vida, aí a vejo,
Embora seja noite.
Uma outra temática presente nos escritos deste grande santo, ainda que ligada à noite, é a do «entardecer da vida», a que Santo Alberto chamava «Undécima hora», a hora e o momento do encontro com Deus em que seremos julgados. Como já disse algumas vezes neste blog, não creio que Deus nos irá fazer muitas perguntas, nem que haverá um tribunal para pesar a nossa vida, nem um julgamento apocalíptico e terrível - ainda que cada um acredite no que queira - mas haverá uma simples pergunta, que eu fui buscar a este grande santo: «Quanto amaste?».
S. João da Cruz di-lo de uma forma bela: «Ao entardecer da vida seremos julgados no amor». E este amor que é preciso buscar, que é preciso dar para depois se receber, tal como ele mesmo dizia: «Onde não existe amor, coloca amor e amor encontrarás», porque «quanto mais uma alma ama, tanto mais perfeita é naquilo que ama», já que «a alma que caminha no amor não se cansa».
Por fim, já no fim da sua vida, depois de passar todas aquelas noites escuras ele afirmava aos seus irmãos no Carmelo: «a maior necessidade que temos para progredir é calar o apetite e a língua diante do grande Deus, pois a linguagem que Ele mais ouve é o amor calado».
Tenhamos a coragem de viver no amor para podermos ultrapassar todas as noites escuras da nossa vida e não nos esqueçamos que, ainda que seja noite, sabemos que há uma Fonte que mana e corre e uma Luz que nos ilumina e aquece.
"«manhãs de silêncio», «silêncio de Deus», «ausência de Deus» ou, como dizia S. João da Cruz, «as noites escuras»"......bonita definição, palavras bem achadas. Copiei, guardei-as para as ler nos momentos em que parece não "O" vermos e também servirão nos momentos de oração. Vou seguir o seu blog.Obrigada.
ResponderEliminarParabéns pelo seu texto, também pelo poema de S. João da Cruz (desconhecido totalmente para mim). Copiei os dois, tenho-os em notas/Orações no meu tlm, que leio sempre que sinto vontade......é quase oração
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