Do pó que Deus cria e modela
Homilia do Domingo I no Tempo da Quaresma
«Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto,
a fim de ser tentado pelo Diabo.
Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites
e, por fim, teve fome.»
Mt. 4, 1.
1. Na passada quarta-feira iniciamos o tempo da Quaresma e as leituras desse dia deixaram-nos dois grandes apelos. O primeiro, do Profeta Joel, Deus grita: «Regressai a Mim com todo o coração»; o segundo, por meio de São Paulo, a comunidade diz: «Suplicamo-vos em nome de Cristo. Deixai-vos reconciliar com Deus».
A Quaresma é, de facto, o recomeço de uma vida, é o tempo de regresso à casa de Deus, sabendo-nos necessitados do Seu amor e da sua misericórdia, depois de termos experimentado o efeito do pecado, que é este corte de relação com Deus e com a harmonia que Deus cria para o Homem.
As cinzas que impusemos sobre nós é um sinal visível do reconhecimento da nossa condição humana, sempre frágil e mendicante do amor de Deus e, por isso, nos é recordado: «Lembra-te que és pó e ao pó hás-de voltar».
Sim, somos pó! Sim, somos poeira fina que o vento leva! Sim, somos pó!
Mas é desse pó que Deus cria, é do pó que Deus modela, é do pó, que somos nós, que Deus faz a vida, porque nele insufla o Espírito que dá vida. Sim, somos pó! E as cinzas, mais que um recordatório da nossa condição de pó, são uma chamada de atenção: sem o Espírito de Deus somos pó! Sem o Espírito de Deus somos apenas o primeiro Adão, aquele que falha e que destrói a harmonia e a relação com Deus.
2. É deste pó que Deus cria o Homem, é do pó que Deus nos cria. Nesta passagem dos Génesis, os verbos usados para se referir à criação da humanidade são os mesmos do ofício do oleiro, porque Deus é o grande oleiro que transforma este pó em vasos de barro em que habita Deus.
Deus forma o Homem para lhe dar a posse de um paraíso! E que paraíso Deus cria para nós! E que paraíso Deus dá ao Homem para habitar. Deus criou tudo o que há de melhor para que nós fossemos felizes, mas criou também a serpente - símbolo do Tentador - que tenta o homem e mulher e que lhes propõe um outro paraíso: «Sereis como deuses».
Ser como deuses! É a tentação do nosso Mundo! Dispor da vida a seu bel-prazer, querer dominar o Mundo e ou outros, querer dominar e determinar a vida e a morte... ser como deuses! E como é que isto se concretiza hoje? É a tentação da auto-suficiência, do egoísmo, do fechar-se em si mesmo, querer controlar a vida e a morte - com tentativas como o aborto e a eutanásia -, querer controlar tudo e todos em seu próprio benefício. Isto é querer ser como deuses!
Mas, que Paraíso queremos habitar? Que mundo queremos habitar? Como nos reconhecemos no Mundo? Precisamos de nos sentir mais «Adão», de nos reconhecermos humildes, de doar o pó que somos para que Deus nos modele e nos dê o seu Espírito.
3. O Evangelho de hoje mostra-nos a outra face da moeda: Jesus, o novo Adão, que se mostrou «em tudo igual a nós, excepto no pecado».
Jesus vai ao deserto, não por imposição, mas porque guiado pelo Espírito o levou até lá e com um objectivo muito claro: o de ser tentado pelo Diabo! É no deserto que Jesus é tentado. É na aridez do deserto das nossas próprias vidas que vamos sendo tentados, em que somos postos à prova, mas também é no deserto que Deus nos fala ao coração. É para o deserto que temos de caminhar!
As tentações de Jesus são as nossas tentações, mas o mais importante não são as tentações mas as respostas que lhes damos. Vejamos o que fez Jesus:
a) «Diz a estas pedras que se transformem em pães»
Esta é a tentação do materialismo, do pensar que os bens materiais, o dinheiro, as coisas nos farão mais felizes. Quantas vezes aqueles que tudo têm são privados do afecto, do amor, da compaixão? O verdadeiro e único alimento é fazer a «vontade do Pai». A verdadeira felicidade não está nas coisas, mas nos gestos e atitudes que temos para com os outros.
b) «Lança-te daqui abaixo»
Esta é a tentação do êxito e da fama, do espectáculo e da aparência, do fazer para se ser visto. Trata-se, no fundo, das razões das nossas acções. O que fazemos é para sermos vistos ou porque é bom fazer o bem? A verdadeira vida é aquela que se vive no interior, no segredo, na humildade.
c) «Tudo isto te darei se prostrado me adorares»
É a tentação da idolatria, de criarmos os nossos ídolos, de criarmos deuses à nossa imagem e semelhança, de procurar um Deus que nos satisfaça. Quantos ídolos criamos? Quantas vezes nos prostramos diante do dinheiro, da fama, do protagonismo, das influências? Quantas vezes criamos um Deus à nossa imagem e semelhança? Tudo isto Jesus combate e mostra-nos que nós é que nos devemos tornar, cada vez mais, imagem e semelhança de Deus.
4. Jesus, o novo Adão, vem restaurar a harmonia entre Deus e o Homem, harmonia essa destruída pelo pecado. Jesus mostra-nos, através desta resistência ao mal, que todos nós precisamos de permanecer fiéis e vigilantes neste caminho que fazemos com Deus. Jesus ensina-nos que as tentações vêm à nossa vida e é tentado para nos mostrar que não temos de nos sentir perturbados.
Deus não nos impede de ser tentados! Deus apenas permanece connosco no meio da tentação para nos mostrar que com o Seu Espírito nos tornamos mais fortes e mais capazes de resistir ao mal. Permite que sejamos tentados para que nos conservemos prudentes e não ficarmos com a consciência de que o Baptismo nos torna imunes ao mal e, por fim, Deus permite a tentação para termos a certeza de que o Espírito de Deus nos torna muito mais valiosos.
Não tenhamos medo de passar ao deserto! Se o deserto é "lugar de prova", também é no deserto que Deus nos fala ao coração. Temos o convite: Regressai a Mim; temos o propósito: resistir ao mal e aderir ao bem; temos os meios: jejum, esmola e oração; e, por fim, temos a certeza: «Deus não nos abandona!».
Passemos, então, sem medo, ao deserto da Quaresma, onde Deus nos fala ao coração, para merecermos chegar ao paraíso da Páscoa, onde receberemos a vida. Porque, como diz o ditado, «Deus dá as maiores batalhas aos seus melhores soldados».
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