Sem caridade tornamo-nos seres auto-referenciados

Ontem, num grupo de jovens reunidos via Zoom, reflectíamos sobre a humildade e o seu contrário. Acabei por fazer uma «conferência» a partir da Primeira Carta aos Coríntios, capítulos 13 e 13, sobre o assunto e muitos me pediram para colocar as ideias mais importantes por escrito para que eles pudessem reflectir durante a semana. Juntando isto a algumas circunstâncias que fui vivendo ao longo da semana anterior, elaborei este pequeno texto que convosco partilho. Pode ser que ajude algum ou alguma a fazer um exame de consciência.

No nosso mundo tão actual, vivemos numa tensão constante entre aquilo que são os valores verdadeiros e que nos guiam e iluminam no caminho e os valores que parecem iluminar mais o mundo, ainda que não sejam os que nos conduzem à verdadeira felicidade.

Ainda há pouco tempo, quando ficamos isolados, fizemos tantas promessas e expressamos tantos sentimentos. Alguns até se diziam sentir «como que canários: livres e felizes dentro das gaiolas». Tal como o Papa Francisco alertou num "Angelus" durante o tempo de pandemia, «esta é uma oportunidade para mudarmos o nosso modo de agir no mundo. [...] Deixemos de nos auto-referenciar, deixemos o orgulho de lado e passemos a olhar para o irmão que precisa de nós e nós dele», porque - continua o Papa - «Não nos salvamos sozinhos [...] e vamos todos no mesmo barco». E este sentimento durou enquanto estivemos encerrados e isolados, mas mal a porta da gaiola se abriu, voltamos ao mesmo: egoísmos, orgulhos, sede de poder, de protagonismo, etc. 

É este orgulho e sede de protagonismo, o desejo de controlar tudo, de ser «o centro do mundo» que mina o mundo e as relações humanas. A lógica da promoção, da ganância, do ser «eu, eu e depois eu». Há um cântico juvenil, que apesar de não fazer parte dos meus preferidos, eu costumo usar para falar do egoísmo e que diz assim: «Tudo gira à tua volta e em função de ti / não importa o quando, o onde e o porquê». E isto é tudo contra o Evangelho.

São Mateus, num dos trechos Evangélicos que temos ouvido estes domingos - creio que no Domingo XXII - aponta-nos um modelo de comunidade: o modelo da fraternidade e do perdão; Jesus aponta-nos uma comunidade que é serviço e São Paulo chega mais longe e diz que a comunidade dos cristãos é um corpo com muitos membros e que cada membro não está para substituir o outro, mas para completar. Logo aqui percebemos que todos fazemos falta a este grande corpo e que todos temos lugar. Por isso, o ciúme é desnecessário. Todos somos necessários, mas nenhum é insubstituível.

Mas vejamos o texto:

O corpo não é composto de um só membro, mas de muitos.
Se o pé disser: "Porque não sou mão, não pertenço ao corpo", nem por isso deixa de fazer parte do corpo. E se o ouvido disser: "Porque não sou olho, não pertenço ao corpo", nem por isso deixa de fazer parte do corpo. Se todo o corpo fosse olho, onde estaria a audição? Se todo o corpo fosse ouvido, onde estaria o olfacto?
De facto, Deus dispôs cada um dos membros no corpo, segundo a sua vontade.

É segundo a vontade de Deus que somos membros de corpo e somos dispostos por Deus. Não é por nossa vontade, nem muito menos por acharmos que assim devia ser. É Deus que opera em nós a sua vontade. Mais nos ensina que todos somos necessários e que todos temos uma função a cumprir. Quantas vezes vemos membros deste corpo eclesial a querer tomar o lugar de outro membro? Quantas vezes vemos membros a querer acumular funções dentro deste corpo para se destacarem dos outros? Cada um tem uma função e cada um deve ocupar apenas e só o seu lugar.

Continua o texto:

O olho não pode dizer à mão: "Não preciso de você! " Nem a cabeça pode dizer aos pés: "Não preciso de vocês!". Pelo contrário, os membros do corpo que parecem mais fracos são indispensáveis, e os membros que pensamos serem menos honrosos, tratamos com especial honra. E os membros que em nós são indecorosos são tratados com decoro especial, enquanto os que em nós são decorosos não precisam ser tratados de maneira especial. Mas Deus estruturou o corpo dando maior honra aos membros que dela tinham falta, a fim de que não haja divisão no corpo, mas, sim, que todos os membros tenham igual cuidado uns pelos outros.

Aqui o ensinamento intensifica-se, porque para além de todos serem necessários, nem sempre os membros maiores são os mais necessários. É um convite à nossa humildade. A reconhecer a grandeza dos outros não pelo tamanho ou pela lugar que ocupa, mas a verdadeira grandeza está na função que ocupa. Quantas vezes desprezamos os membros mais pequenos? Quantas vezes «puxamos os galões» para nos dizermos mais importantes?

Por fim, o capítulo 12 da Primeira Carta aos Coríntios conclui:

Quando um membro sofre, todos os outros sofrem com ele; quando um membro é honrado, todos os outros se alegram com ele. Ora, vocês são o corpo de Cristo, e cada um de vocês, individualmente, é membro desse corpo.


E isto é a construção do corpo de Cristo, a Igreja. A caridade - e não a "caridadezinha" - é o reflexo do amor com que Deus nos ama. É uma caridade que se faz amor, serviço, atenção, amizade e cuidado aos outros. É um amor condoído, é a compaixão. Para se fazer parte deste grande corpo não fazem falta o orgulho, a arrogância, a sede de poder, mas do outro. Temos de fazer os outros felizes para sermos felizes, temos de sentir a dor do outro para sermos mais fraternos e caridosos. Quantas vezes alguns se tornam felizes por ver os outros tristes? Quantas vezes há pessoas que se regozijam com a tristeza dos outros? Isto é contra-Evangelho!

São Paulo, no Capítulo 13 da Primeira Carta aos Coríntios exalta a virtude da caridade. «Se não tiver caridade... nada sou!»:

Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o sino que ressoa ou como o prato que retine.
Ainda que eu tenha o dom de profecia e saiba todos os mistérios e todo o conhecimento, e tenha uma fé capaz de mover montanhas, mas não tiver amor, nada serei.
Ainda que eu dê aos pobres tudo o que possuo e entregue o meu corpo para ser queimado, mas não tiver amor, nada disso me valerá.
O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha.
Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor.
O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade.
Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
O amor nunca perece; mas as profecias desaparecerão, as línguas cessarão, o conhecimento passará.
Assim, permanecem agora estes três: a fé, a esperança e o amor. O maior deles, porém, é o amor.

Podemos ter muitos cargos, mas se não os exercemos com caridade, nada somos; podemos ter muitos talentos, mas se não os colocamos ao dispor dos outros, nada somos; podemos considerar a nossa vida uma dádiva aos outros, mas se o fazemos por auto-promoção de nada vale; podemos, até, criar e contribuir em associações de bem-fazer, mas se isso não for por amor, de nada nos vale. É o amor que move o mundo, como dizia o fr. José Augusto Mourão.

Enquanto formos mesquinhos, egoístas e agentes do auto-referenciamento, o nosso amor nunca será verdadeiro. Somos felizes se formos capazes de fazer os outros felizes, acolhendo-os com amor e misericórdia. Somos felizes se formos capazes de fazermos aos outros o «bem sem olhar a quem». 

Aproveitemos este tempo de pandemia para mudarmos definitivamente a nossa vida e de ocupar o lugar que nos compete sem querer substituir os outros e, muito menos, sem nos acharmos insubstituíveis porque, como dizia alguém, «o cemitério está cheio de insubstituíveis». 

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