Da desobediência ao cumprimento
«Mother and child», J. Kirk Richards |
1. Nos séculos IV e V, houve uma grande discussão entre Santo Agostinho e um monge inglês chamado Pelágio sobre o pecado original: existe ou não existe? É verdade ou não? O que é este pecado original? Uns afirmavam que sim, outros dizem que não.
Os Padres da Igreja do século VI começam a afirmar que existe e que se passava através do acto sexual, outros que diziam que era no momento do nascimento e outros, ainda, que não existia de modo algum. É um tema muito complexo e que não o podemos abordar aqui.
O que podemos dizer deste pecado? Podemos dizer que é uma tendência do homem e da mulher para quererem ser como deuses, para ocuparem o lugar de Deus, querer ocupar o lugar de Deus. Por isso, Adão e Eva desobedecem a Deus. Todos nós de forma mais ou menos consciente acabamos por cair neste pecado. É isto este pecado! A tendência de querermos ser deuses.
Maria, Mãe de Jesus, foi preservada do pecado original, que poderíamos dizer, é a marca ou o sinal de nascença de todos nós e que é apagada pelo Baptismo. A vida de Maria é o exemplo de uma vida cheia de graça, porque livre de todo o mal para servir de canal de salvação para que Deus possa actuar no Mundo, através do Seu Filho, em tudo igual a nós, excepto no pecado.
A luta que travamos contra este pecado das origens é a luta interior contra nós mesmos para que na nossa vida não apareçamos nós, mas Deus em nós.
2. Na primeira leitura que escutamos, do Livro do Génesis, vemos retratada esta desobediência de Adão e Eva. E surgem três perguntas de Deus que nos poderiam ser feitas ainda hoje a cada um de nós:
«Onde estás?»
Porque te escondes de Mim? Porque tens medo de Mim? Não sabes que quero para ti uma vida de felicidade? Também nós andamos muitas vezes longe de Deus, procuramos Deus noutros sítios e entidades que nos vão afastando do verdadeiro caminho de Deus.
Quem te deu a conhecer que estavas nu?
Quantas vezes queremos ser os donos e senhores dos nossos destinos? Porque confias noutros «deuses»? Porque te deixas seduzir pelo mal? Porque não depositas em Mim a tua confiança?
Que fizeste?
Na ânsia de dominar, na sede de poder, também Deus nos pergunta: Que fizeste ao Mundo que eu te dei? Porque o destróis?
Como vemos, aquela história que parece tão distante de nós, é bem real nas nossas vidas de hoje. Deus trilha para nós caminhos de bondade, de ternura, de amor e justiça e nós preferimos tantas vezes seguir o nosso egoísmo em busca de uma felicidade rápida e fácil, mas que rapidamente acaba. É por isso que Maria surge como a Nova Eva, porque obediente a Deus e nos ensina a caminhar os caminhos de Deus, não por serem fáceis ou difíceis, não por ser mais rápido ou mais lento, mas porque esse caminho nos levará à verdadeira felicidade.
3. Neste belíssimo e profundo relato da anunciação vemos como Deus procura sempre o homem e a mulher de cada tempo para fazer neles a sua morada. Sim, Deus quer habitar em nossa casa e a nossa vida.
Existem quatro momentos fundamentais neste relato que acabamos de escutar:
«O Anjo Gabriel foi enviado por Deus a Maria». Deus envia o seu anjo, Deus vem ao nosso encontro. Que bom é saber que este Deus, o nosso Deus, vem ao nosso encontro, que nos acaricia com as suas palavras, que nos toca a vida e que vem para habitar a nossa casa. Deus vem não só nos momentos de alegria, mas vem sobretudo nos momentos de tristeza para nos dizer: «Alegra-te!».
«Avé, ó cheia de graça». É isto que Deus nos pede: Alegra-te! Não pede muitas coisas, não pede que nos ajoelhemos, que façamos isto ou aquilo, mas uma só coisa: Alegra-te! Abre o teu coração à alegria! Enche-te da minha graça! Cheia de graça quer dizer isso mesmo: cheia de Deus, amada por Deus, escolhida por Deus! Também nós muitas vezes estamos tão cheios de nós mesmos que não nos conseguimos abrir à graça de Deus.
«Como isto é possível?». A dúvida, o medo, a incerteza faz parte das nossas vidas. Maria não diz logo sim, mas questiona-se sobre a possibilidade de tão grande maravilha que Deus nela realiza. As nossas dúvidas e medos não podem ser um entrave à graça de Deus. Reconhecer a nossa pequenez fará de nós reconhecidos e necessitados da graça de Deus.
«Eis a escrava do Senhor! Faça-se em mim segundo a Tua palavra». Ser escravo ou ser servo de Deus não é em nada uma diminuição ou humilhação, mas um reconhecer-se sempre pequeno diante dos milagres que Deus faz em nós. Ser servo do Senhor é o modo de reconhecer que na nossa vida muito pouco devemos a nós mesmos e só Deus, com a Sua graça, nos leva a fazer grandes coisas.
Por isso, este pecado das origens é uma luta que temos de travar para dar o nosso «sim» corajoso a Deus e um «não» assertivo a tudo aquilo que nos afasta de Deus. É um dizer «sim» ao bem e um «não» ao mal, porque o mal é que nos escraviza e o bem faz-nos servidores.
4. E, assim, Maria é o verdadeiro exemplo e a quem devemos imitar. Dizer sim a Deus é querer encher-se da Sua graça, dando lugar a Deus e fazendo com que Deus apareça nas nossas vidas. É esta a história de Maria e é também a nossa própria história, a história generosa e corajosa de um «sim» pelo qual nos foi dado o Salvador.
Também hoje o anjo vem ao nosso encontro, à nossa vida, à nossa casa para nos dizer:
«Alegra-te, cheio/a de graça» porque Deus está contigo, no teu coração e na tua vida. Sê no Mundo o canal da minha salvação.
Que Maria, a cheia de graça, nos ajude a caminhar para o seu Filho Jesus e procuremos nós imitar na nossa vida o exemplo desta cheia de graça, rejeitando o mal e aderindo somente ao bem que, no fundo, é para a felicidade plena que fomos criados.
(Igreja de São Martinho de Aldoar, 8 de Dezembro de 2020)
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