Ubi caritas (?)

The greatest in the Kingdom | J. Richards
chegamos do deserto do nosso quotidiano
desolado, cego, 
do espectáculo das pequenas mortes
que olhamos sem estremecimento nem remorso
pode a banalidade de chumbo do quotidiano
abrir-se ao fluxo estranho da luz e da memória
de todas as nossas quedas e esperanças?

pode a Palavra da Sarça reacender ainda
a Promessa do dom e da comunhão?
e não são o pão e o vinho desta ceia

as figuras do dom extremo
daquele que morreu para testemunhar
da santidade e justiça de Deus?

fr. José Augusto Mourão, op

Para mim, a Quinta-feira Santa tem sempre o seu quê. É um dia atarefado, mas harmonioso e bonito.

Temos sempre muito que fazer no Convento: preparar a Igreja, preparar as refeições, preparar as celebrações, mas sinto-me bem a fazê-lo e penso naquela frase: «O Mestre manda dizer que é em tua casa que vai celebrar a Páscoa» e, por isso, preparamos com carinho todos estes momentos. Recordo aqueles serventes da Última Ceia, também atarefados, certamente, com os preparativos e isso ajuda-me a preparar o coração para a celebração. É um dia bonito este...

Gosto, também, deste dia porque nos dá uma visão de que a vida é um serviço, seja por estes preparativos, seja mesmo porque tudo hoje nos lembra essa dimensão do serviço e da caridade.

Hoje foi o dia da caridade, do serviço, da fraternidade, de lavar os pés aos outros e lembrei-me, tantas vezes, dos nossos irmãos sem-abrigo que não tiveram uma ceia hoje, em tantos irmãos perseguidos que não puderam celebrar este dia, de tantos irmãos violentados... enfim, da desgraça do nosso mundo.

Dá-me pena que estejamos acostumados a «comer com os mortos», pois são tantos os que comem com a televisão acesa, onde se noticiam mortes e mortes e nós, impassíveis, imóveis, «sem estremecimento ou remorso», apenas continuamos a refeição...

A Quinta-feira Santa é o dia da Caridade (Amor) e devia-nos doer na alma as notícias que ouvimos de que, por exemplo, cristãos coptos foram assassinados durante uma celebração, devia-nos doer na alma quando ouvimos que os Estados Unidos fez explodir a maior bomba não-nuclear no Afeganistão... devia-nos doer na alma e não pensar apenas «oh coitadinhos, nós é que estamos bem!» Não, nós não estamos bem assim... 

Que este dia da caridade se converta numa chamada de atenção, uma atenção que se faz presença... não basta estar no sofá a ver, é preciso agir. Lembro-me de um dia falar com um padre e de lhe dizer: «Sabe, até gostava de mudar algumas coisas no Mundo... mas sozinho, não vou longe!» e a resposta não se demorou: «Mas se nunca começares, nunca nada há-de mudar». É isto... há que pôr as mãos ao trabalho, é tempo de agir, de tomar atitudes que edifiquem, que nos diferenciem dos que são impassíveis ao sofrimento do outro. 

Que este dia da caridade, véspera do grande dia do amor e da entrega, nos leve a tomar um novo rumo para a nossa vida. Que este dia seja uma oportunidade de servir, de amar e de agir.

Pax Christi!

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