O que preparamos?

Mas Deus respondeu-lhe:
‘Insensato! Esta noite terás de entregar a tua alma. O que preparaste, para quem será?’
Assim acontece a quem acumula para si, em vez de se tornar rico aos olhos de Deus».

A vida e, em especial, a vida religiosa é um preparar, ou melhor, é um preparar-se. Mas cautela, não se pode preparar para uma vida 'divina' com critérios do Mundo.

Assim, tornar-se-ia vã a nossa preparação e, por conseguinte, toda a nossa vida seria vã. Não é isso que queremos, claro está!

Lembro-me de um frade que veio para Portugal para se tratar de um cancro e que, numa reunião comunitária, afirmou: «Não procuro uma cura imediata para a minha doença. Até porque não temo a morte! Toda a minha vida religiosa foi uma preparação para este momento». É claro que esta confiança impacta... Mas, no fundo, há que dar-lhe razão: a nossa vida é uma preparação para um encontro com Deus e a morte é a porta desse encontro.

Contudo, queria refelctir sobre o trecho bíblico que acima publiquei e que me chama à atenção e, a mim mesmo, faço a pergunta: «O que preparei? Para quem será?».

Será que preparamos um corpo muito esbelto, cuidado e esvaziamos o interior? Será que preparamos uma bela capa exterior e deixamos que o interior esteja cheio de podridão? Será que preparamos um coração aberto à misericóridia ou andamos na maledicência, no pecado ma mesquinhez, no pecado da zombaria? Será que preparamos uma vida de ajuda aos irmãos ou dificultamos a vida aos irmãos?

Grandes perguntas, grande esforço por lhes responder com sinceridade de coração...
E tudo isto? Para agradar a Deus ou para que Deus me agrade? É preciso reflectir...

Porém, ao ler este texto recordei-me de um versículo de Lucas que vem na continuidade deste evangelho, em que se diz: «Onde está o vosso tesouro, aí estará, também, o vosso coração» (cf. Lc. 12, 34). E surge mais uma pergunta: Onde está o meu tesouro? Onde está o meu coração? O meu coração está onde está o meu tesouro?





De facto, «Deus é amor» (I Jo. 4, 8) e este amor, que é Deus, é o Tesouro que trazemos em vasos de barro (II Cor. 4, 7), que é a nossa vida e, quando a nossa vida é suportada pelo amor de Deus, somos capazes de enfrentar todas as dificuldade da vida, pois encarnamos as características deste amor, que tal como diz S. Paulo, «o amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta (Cf. I Cor. 13, 4-7). Quando isto não se verifica, é preciso pensar no que temos preparado.

Este tesouro do amor de Deus, que é Dom, é preciso ser acolhido e vivido. Só assim seremos ricos aos olhos de Deus. Deus não é ecónomo e não olha aos números, mas Deus olha o coração. É isso que devemos preparar...

No Sermão 34, Santo Agostinho, refecte um pouco sobre isto e, por isso, publico aqui excertos desse sermão:

«Irmãos, examinai com atenção a vossa morada interior, abri os olhos e apreciai o vosso capital de amor, e depois aumentai a soma que tiverdes encontrado em vós. E guardai esse tesouro, a fim de serdes ricos interiormente. [...] Mas que coisa há mais cara do que o amor, meus irmãos? [...] Mas, se desejas possuir o amor, procura apenas em ti mesmo, pois é a ti mesmo que tens de encontrar. [...] Que receias ao dar-te? Receias perder-te? Pelo contrário, é recusando-te a dar-te que te perdes. [...]O teu coração sofria quando estava em ti; eras presa de futilidades, ou mesmo de más paixões. Afasta-te delas! Para onde hás-de levá-lo? A quem o hás-de oferecer? “«Meu filho, dá-me o teu coração», diz a Sabedoria. Se ele for meu, já não te perderás. [...] Quem te criou quer-te todo para Si.»


E tu?
O que preparaste?
Para quem será?






Senhor, cuida destes vasos de barro - que somos nós -, tantas vezes partidos, rachados pelas contrariedades da vida. Senhor, tu que és o «reparador das brechas» (cf. Is. 58, 12), repara as nossas quebras com o ouro novo do teu amor. Só assim, poderemos ser teus guardadores, guardadores desse Tesouro que és Tu.


Pax Christi!


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