Deus fere e trata a ferida

Oh! Desolação. 
Seja aquela noite estéril, e nela não se ouça qualquer manifestação de contentamento.
Amaldiçoem-na aqueles que maldizem os mares 
e são capazes de provocar o Leviatã, o monstro marinho.
Que as estrelas da madrugada fiquem às escuras, 
e a alva espere em vão pelo romper da aurora; 
pois não fechou o ventre de minha mãe, 
nem poupou meus olhos de contemplar a miséria e o mais terrível sofrimento.
Ora, por que não me foi tirada a vida ainda no ventre de minha mãe? 
Por que não morri ao nascer?
Por que fui acolhido em seu colo? 
Por que me deu seus seios e me alimentou?
Porquanto, se assim fora, agora estaria dormindo, 
jazeria em paz e desfrutaria de tranquilidade e descanso.
cf. Job 3, 1 - 19

Desde o capítulo 3 ao 14 do Livro de Job, desenrola-se o primeiro ciclo de discussões e é interessante que a primeira discussão é consigo mesmo, isto é, Job descobre-se naqueles dias de luto e é esta lamentação que rompe todo aquele silêncio de morte. Job não está morto, Job está vivo e confiante, ainda que desolado com todo aquele sofrimento inocente. 

Mas nunca Job amaldiçoa a Deus, tal como a mulher lhe tinha incitado a fazer. Ora, para Job a origem do seu sofrimento é o dia do seu nascimento, aquele diz que foi feliz mas que agora se converte em infelicidade e desolação porque, se Job não tivesse nascido, também não padeceria tais sofrimentos. 

Job chega mesmo a desejar a morte, a sua passagem para o «Sheol» (Reino dos Mortos, em hebraico) porque aí repousaria e desfrutaria de de paz e tranquilidade. 

Job é o personagem da tempestade, ou melhor, a vida de Job é comparada à tempestade que destrói, que deixa rasto, que muda a ordem da sua vida. Por isso, no meio de todo aquele sofrimento inocente, Job encara - como era costume entre os judeus - o seu sofrimento como pecado. Se não foi Job a pecar, então algum dos seus antepassados teriam pecado gravemente contra Deus. 

Ora, o sofrimento de Job não é gerado pelo pecado, mas por Satan, o Acusador. Satan quer uma simples e única coisa: que Job amaldiçoe a Deus! 

O mal procura sempre que nos afastemos desta felicidade que temos em Deus, uma felicidade que é plena e que, por isso, leva à inveja do demónio, que nos inflige castigos e penas para que a nossa felicidade seja abalada e, por consequência que abandonemos a Deus e sigamos pelo exíguo caminho do mal.

Mas hoje, queria reflectir sobre a vida. Tenho acompanhado o caso de um jovem amigo que tem um síndrome psíquico chamado «Borderline» (não vou aqui explicar o que é!). E quando li este trecho, lembrei-me das suas palavras e posso dizer que eram tal e qual as de Job. O que originou este síndrome foram um conjunto de factores relacionados com a família. Hoje, graças a Deus, este jovem está na sua ultima fase de terapias e bastante bem pelo que tenho visto!

Nós não estamos acostumados a sofrer. Os factores que originam esta lamentação de Job é aquela doença e a desolação que sente por ter perdido tudo, a deste jovem amigo é o drama familiar, a nossa pode ser a carreira profissional, um relacionamento, uma doença, uma má experiência. 

A maior parte de nós já nasceu num 'berço de ouro', isto é, num mundo que nos oferece tudo para estarmos bem: telemóveis, medicamentos, liberdade, etc. Por isso, achamos que já não há lugar para o sofrimento, que a única coisa que temos de fazer é viver bem e o resto de pouco nos importa. Ora, este tipo de sentimentos não nos fica nada bem... 

O sofrimento e a alegria fazem parte da vida, são muitas vezes compatíveis em determinados momentos da nossa vida. E não devemos descartar o sofrimento porque nos faz sofrer (passo a redundância). 

A nossa sociedade procura hoje meios para acabar com o sofrimento, mas são tão radicais que acabam com a vida e não com o sofrimento. Daí temos os abortos, as eutanásias, os suicídios. Estas soluções arranjadas pela sociedade não são para dar dignidade à vida, mas para a destruir. 

Depois, aqueles que as defendem vêm com o discurso de «é para dar à mãe uma vida digna» (aborto), «é para que a pessoa não sofra tanto e possa ter uma morte digna» (eutanásia). Tirar a vida não é, de todo, dignidade. Tudo isto são 'politiquices' e entretenimento para desviar a atenção do povo, em nome de uma pseudo-dignidade! Lamentável... 

O dia do nosso nascimento é um dia de felicidade e o mal tenta dar a volta, distrai-nos daquilo que é a verdadeira felicidade. Job percebe que aquele dia do nascimento foi cruel porque o trouxe ao mundo, no qual sofre, mas nunca perde do seu horizonte o rosto de Deus. 

Mas, deixo para reflexão as seguintes perguntas:
Como encaro o sofrimento? Que situações na minha vida me fizeram sofrer e porquê? Diantes destas situações, em que me refugiei para as ultrapassar? Refugiei-me em Deus ou noutros 'deuses'? Como encaro a vida? 

Que, ao longo desta Quaresma, sejamos capazes de identificar as nossas feridas - porque a identificação da ferida é o primeiro passo para a cura da mesma - e, depois de as identificar, chegamos capazes de as deixar ao cuidado do nosso Deus «que fere e trata a ferida» (Job 5, 18)...

Que saremos estas feridas da nossa vida...

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